Crônicas da vida - Um "Andarinho"
Hoje vou iniciar uma
série onde vou narrar fatos da vida que presenciei ou que me
contaram e que entendo que tenham algum valor pra vida, afinal aqui
nessa blogosfera nossa visão é integral: corpo, mente e espírito e
nada como os fatos, as histórias, as percepções reais para nos
motivar, nos ensinar, nos conscientizar …
Um “andarinho”
Celestina e seu marido
Franscisco, carinhosamente chamados de Tina e Chico, trabalham com
pintura de residências e pequenas reformas.
Chico já com 70 anos,
todo dia pega sua bicicleta e segue para o local onde está
trabalhando.
Tina cuida de detalhes
da casa, de gente necessitada, de todo tipo e condição, e depois
segue para o local para ajudar o Chico.
Para alguns trabalhos
eles contratam ajudantes, dependendo do volume do mesmo e da pressa
do contratante.
Certa vez contrataram
Mauro, um “andarinho”, assim o chamavam devido à sua pouca
formação e até mesmo a um pouco de surdez da Tina.
Chico é meio devagar
nas ideias, na percepção das realidades, nas decisões da vida.
Viúvo, antes de
conhecer Tina e pai de Paulo que não se preocupa muito com o
trabalho. Parece até estar esperando a herança pra viver de “renda”
( o aluguel da propriedade onde moram).
A Mardita!
Mauro ajudou em muitos
trabalhos e se tornou “amigo” de Tina e Chico, porém não tinha
onde viver ou morar e era usuário de tudo o que muitos que vivem na
rua usam: drogas, alcool, etc....
Certa vez Mauro chegou
tão “tocado” no trabalho que teve que voltar pra “casa”.
Nessa altura Tina tinha providenciado um quarto numa pensãozinha
onde Mauro acomodou suas coisas que não eram muitas (uma bicileta,
algumas poucas roupas e uma caixa de documentos).
Mas no caminho de casa
achou um bar, e existem muitos bares nos caminhos da vida de todos
nós.
O bar no caminho de
Mauro vendia a mardita cachaça, que é muito boa pra culinária e
até para uns goles conscientes (de quem realmente tem consciência),
mas muito ruim pra quem talvez até com consciência mas sem
esperança, perspectiva, ou com doenças do corpo e da alma utiliza a
mardita como fuga, ou outro tipo de explicação que muitos tentam
dar.... e poucos conseguem entender.
Bebeu tanto que entrou
em coma alcoólica.
Alguém o recolheu ao
Pronto Socorro, de lá ligaram pra Tina.
Havia um papel com seu
telefone no bolso de Mauro. Tina providenciou internação numa
clínica de recuperação e Mauro conseguiu ficar sete meses sem
beber!
Voltou a ajudar Chico e
Tina nas empreitadas quando necessário, mas depois de um tempo
sumiu.
Foi despejado da
pensão, por falta de pagamento, embora Mauro se vangloriava de ter
uma poupança de dezoito mil. Fala-se que uma mulher o enganou
servindo-o de alguma maneira mas ficando com a grana toda.
Mauro voltou a andar,
fora do ninho ou no ninho, afinal era um “andarinho”.
O que de sempre às vezes deixa de ser!
Passado algum tempo
Tina recebe um telefonema:
- por favor dirija-se ao Pronto Socorro. O senhor Mauro chegou por aqui com fortes dores e precisa passar por uma cirurgia. Só encontramos um papel com seu telefone no bolso de Mauro. Não encontramos familiares.
Tina pensou ser o
pronto socorro da cidade onde morava e com pressa arrumou-se e foi
até o PS onde ninguém sabia de nada.
De imediato não passou
pela cabeça de Tina que seria na cidade vizinha. Agoniada tentou
tudo o que conhecia, mas não encontrou onde estava Mauro.
Chico, como sempre, não
ligou o lé com cré e não percebeu a gravidade da situação. Ele
conhecia uma irmã de Mauro que morava numa cidade há mais de 500 Km
de distância, mas não sabia como acioná-los, nem seus nomes, nem
nada....
Certa vez Tina já
tinha ajudado Mauro que estava com duas facadas na barriga. Segundo
ele era uma tentativa de suicídio, mas ninguém sabe até hoje o que
realmente aconteceu. Como sempre Mauro saía bem da situação e
voltava para sua vida.
Mas desta vez a
história teve um final diferente.
Tres dias depois o
telefone toca novamente procurando por Tina:
- dona Tina, infelizmente o senhor Mauro faleceu e encontra-se no IML.
Depois de uma breve
conversa descobriu-se que era na cidade vizinha. Não havia mais o
que fazer!
Não para a vida, mas
ainda havia algo para a dignidade!
Dignidade
Dignidade é algo que
devemos a todos.
Mesmo aos que
consideramos indignos!
Mesmo aos que tem
trajetos de vida com o qual não concordamos, ou não entendemos, ou
que explicamos mas não cabe na razão, porque afinal existem razões
que a própria razão desconhece!
Mauro fora órfão de
mãe logo aos dois anos de idade e fora criado por essa irmã que
Chico conhecera.
Explica? Justifica?
Conforta?
Acho que sim e acho que
não! Você me entende?
Tina, que sempre
dignificou os necessitados, que sempre ajeitou as situações de
alguns desprezados, rejeitados, indesejados...dignificou a morte de
Mauro.
Foi até o IML.
Reconheceu Mauro. Como enterrar alguém sem família? É preciso
autorização do delegado.
Foi até a delegacia.
Esperou pelo delegado que estava em horário de almoço.
- O que eu tenho a ver com isso?
Explicou a situação e
conseguiu a autorização.
Voltou ao IML. Agora é
preciso ir ao serviço funerário.
E como providenciar as
coisas sem dinheiro?
O servidor do IML deu o
caminho das pedras. Procure fulano de tal....
Caminhou até o serviço
funerário. Fulano de tal estava ocupado. O outro disse que custariam
setecentos reais!
Desconversou e deu uma
volta olhando o preço dos demais “envelopes de madeira”. Tinha
um de trezentos e cincoenta e dois reais. Porque será que o homem
falara setecentos?
Fulano de tal
desocupou-se. Atendeu com respeito e dignidade aquela que buscava
dignidade para um “morto indigno”.
- A senhora quer com flores? Se for com flores só dá tempo pra amanhã. Sem flores a gente pode enterrar agora mesmo. Mas tem que ser agora. Só temos mais uma hora.....
Foi sem flores mesmo.
Mas como faço pra chegar ao cemitério?
- falo com o motorista e a senhora vai de carona!
Dignidade mesmo no
carro fúnebre!
Foram ao IML, retiraram
o corpo, levaram ao cemitério. Sem flores.
Sem flores? Pera
aí......Moço espera um pouquinho.
A floricultura do
cemitério estava fechada. Bateu tanto que alguém apareceu.
Um pequeno vazinho de
flores.
Segue o enterro. Tina
sempre achou tristes aqueles enterros sem ninguém acompanhando e
agora lá estava ela numa situação onde era apenas uma conhecida do
morto. Uma conhecida que lhe dava agora um último momento de
dignidade.
Os coveiros estavam
realizando um outro sepultamento e ao perceberem a situação pediram
aos acompanhantes deste para ajudarem a carregar o caixão daquele!
Dignidade solidarizada!
No local da cova. Moço,
pode abrir um pouquinho só o caixão?
Poder não pode, mas
devido à situação.....
Chorando, Tina
despetala a flor do vazinho sobre o corpo de Mauro.
- Seu burro, eu falei pra você ficar longe da mardita cachaça!!!
Dignidade novamente,
mesmo em meio a palavras mais duras.
Choro, pela ausência
da dignidade, pela indignação diante de situações da vida, mesmo
na presença da morte, mas que devolvia dignidade...
Chico não fora junto,
não percebera novamente a situação. Tina resolvera, como sempre!
Depois disso uma semana
de tentativas para encontrar a família. Finalmente um número de
telefone do interior.
Tina foi até uma
vizinha que tinha um plano de interurbanos sem custo e ligou.
Alguém atendeu e ao
perceber que Tina queria falar de Mauro logo foi gritando:
- mãe, vem cá. Notícias do tio Mauro!!!
Logo Tina foi falando:
- ei, não se alegre não que a notícia é ruim!
Depois de explicada a
situação a família prometera vir buscar as “coisas” de Mauro.
E como não podia deixar de aparecer na história perguntaram a Tina:
- ele tinha uma poupança né?
Dignidade que o
dinheiro não trouxe. Ninguém sabe se o dinheiro existe ou não.
Pelo menos não a Tina nem mesmo o Chico, que nem sabe cobrar direito
pelos seus serviços.
No dia de voltar ao
cartório para pegar a certidão de óbito Tina levou uma cesta de
queijadinhas preparadas com esmero. Deu um pouco delas pra cada um
que a ajudou no processo.
Dignas queijadinhas promotoras do reconhecimento da dignidade!
Nota: os
nomes verdadeiros dos personagens desta história foram alterados
para preservar-lhes.... a dignidade.
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